Os limites da profissão
Na análise da cobertura do massacre da Escola Professor Raul Brasil, em Suzano/SP pelo G1 e Folha de S. Paulo durante as 24 horas após o ataque, abordada na reportagem anterior, podemos observar uma cobertura extensa porém rasa, detalhista ao extremo nos aspectos errados, e que tem como protagonista os autores do massacre.
Essa cobertura, observada não só pelos veículos analisados, desencadeia alguns questionamentos: até que ponto a maneira como a mídia brasileira retrata estes massacres não contribuem para que outros episódios semelhantes ocorram? Como a mídia deve abordar esse tipo de caso? E mais: até onde deve ir ao jornalista para atender a necessidade de informações do público, respaldados pelo direito público à informação?
O efeito contágio
Diversos estudos, entre eles publicado em 2015 na revista científica Plos One, encontram evidências significativas de que assassinatos em massa envolvendo armas de fogo são incentivados por eventos semelhantes no passado imediato. O pesquisador norte-americano Loren Coleman apresenta em seu livro “The Copycat Effect – How the Media and Popular Culture Trigger the Mayhem in Tomorrow’s Headlines” o efeito Copycat. Ele afirma que o padrão chamado de “efeito copycat”, imitação ou o efeito de contágio se refere ao poder da comunicação de massa e repercussão da mídia para criar uma epidemia de comportamentos semelhantes.
Outro estudo de outubro de 2018, nomeado “The effect of media coverage on mass shootings”, realizado pelos americanos Michael Jetter e Jay K. Walker, aponta uma relação estatística entre a cobertura da mídia de massacres e a ocorrência de casos semelhantes nos Estados Unidos. Segundo o estudo, a cobertura jornalística pode desencadear até três massacres na semana subsequente.
Outra pesquisa, publicada em 2015, mostrou que 30% dos assassinatos em massa foram potencialmente inspirados por assassinatos em massa anteriores e identificou uma cobertura sensacionalista e detalhada da mídia como um possível fator para esse contágio.
A jornalista Fabiana Moraes afirma que a mídia é o grande aparato de visibilização, invisibilização e visibilidade distorcida da sociedade, mas é preciso compreender que nem toda visibilidade é positiva, como no caso de massacres. “Esse aparato vai ser procurado por pessoas que buscam mais atenção, que estão tentando surgir, resolver suas dores de formas adoecidas” completa ela.
O jornalismo brasileiro precisa repensar o típico modelo de cobertura destes ataques e suas possíveis consequências. Essa cobertura embasada no "interesse do público" realmente vale o dano potencial?
Até onde vai o interesse público?
Em seu livro “A Ética Jornalística e o interesse público, Francisco José Karam afirma que: “o compromisso com o público em geral ou com os interesses gerais da sociedade, expressos na ampliação dos direitos civis, reforçou, no caso do jornalismo, a necessidade do acesso e do direito à informação”.
O direito à informação, assegurado pela Constituição Federal de 1988, é o direito de todo indivíduo de acessar informações públicas, ou seja, informações em poder do Estado ou que sejam de interesse público.
Há uma grande dificuldade em definir o termo “interesse público” e acaba por ser tornar uma expressão genérica e abstrata. O interesse público é comumente usado como argumento por jornalistas e veículos de informação para explicar todo tipo de ação e cobertura.
De acordo com o jornalista e presidente da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, Rogério Christofoletti, o interesse público é orientado por aquilo que interfere na vida das pessoas, da comunidade, da coletividade; aquilo que muda as suas vidas, que altera suas formas de se relacionar com a realidade.
“Interesse público e interesse DO público são coisas diferentes”, defende Andrea Trigueiro, jornalista e professora membro do Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco. Segundo ela, é preciso entender a diferença entre uma reportagem que o público tenha interesse e o interesse público. “Interesse público é você trabalhar para que o interesse público seja contemplado. Isto é a educação, a saúde, o desenvolvimento social, assuntos de interesse público”, argumenta ela.
A jornalista Fabiana Moraes também se posiciona sobre o assunto: “Eu acho que a gente não pode confundir o direito à informação com essa ânsia de ir além do que precisamos saber de ataques em massa. Meu direito a informação não cabe a invasão e essa exploração da dor. O nome disso não é o direito à informação”.
De acordo com o Art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, no parágrafo XIV é assegurado a todos o acesso à informação. Para a doutora em comunicação e presidente da comissão de ética do Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco (SINJOPE), Patrícia Paixão, é preciso atentar que todos os direitos são indivisíveis e interdependentes. “Não justifica em nome da liberdade de expressão violar o direito à privacidade, à imagem das pessoas e expor os autores e suas famílias. Liberdade de expressão não é liberdade para fazer tudo. Um direito não justifica a violação de outro direito” afirma Patrícia.
Em seu livro Sobre Ética e Imprensa, Eugênio Bucci afirma que “há outros cuidados que ajudam em dilemas entre o respeito à privacidade e o interesse público. Um deles é sugerido por vários críticos da imprensa: diferenciar o que é interesse público do que é curiosidade perversa do público, que pede escândalo pelo escândalo, doa a quem doer”. Mas como identificar essa linha tênue?
Para Andrea, identificar a linha tênue é muito simples. “O primeiro ponto, a empatia. É só olhar para aquele fato e dizer, ‘e se fosse comigo, com minha família, como eu me comportaria’? O segundo é: observar a questão da dignidade humana. É preciso observar a dignidade humana e onde ela é ferida. Todo mundo sabe o que é respeito, todo mundo sabe o que é dignidade e ética. Mas quando vai pro outro a gente esquece, é preciso voltar para si. E se fosse comigo?” reflete a jornalista.
Para o comunicador Rogério Christofoletti, “o direito à informação vai até os limites da dignidade humana. A sociedade tem direito a saber que ataques como esse acontecem, mas seus detalhes podem fugir ao interesse público e se tornar apenas combustível da exploração midiática da dor e da miséria alheias.” afirma ele.
Andrea afirma que a imprensa não é um ser inanimado, ela é feita por nós, jornalistas. Ela acredita que estamos vivemos um período de descredibilização da profissão e em muitos momentos temos comportamentos antiéticos que nos fazem perder a credibilidade e nos enfraquece como categoria e função social. “A função social do jornalismo é promover o desenvolvimento social. É ser uma arena de reflexão, pensamento, de informação, onde as pessoas possam tirar suas conclusões a partir de olhares diversos sobre o mesmo assunto” defende ela.
Interesse público e interesse do público são coisas diferentes. Interesse público é você trabalhar para que o interesse público seja contemplado. Isto é a educação, a saúde, o desenvolvimento social, assuntos de interesse público."
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Afinal, como retratar?
É preciso entender que a discussão não é sobre a não necessidade de coberturas em casos de ataques em massa, e sim como podemos fazê-la de maneira mais responsável. Não é sobre não retratar, mas como podemos retratar de forma mais responsável e ética.
De acordo com o jornalista João Valadares, é impossível jornalisticamente não noticiar casos de massacres em massa. “Não é que não pode falar, mas como a gente vai falar. A discussão é como minimizar texto antiéticos, sensacionalista, com foco nos agressores” afirma ele.
João acredita que seja necessária uma reflexão e um debate nas redações sobre como realizar uma cobertura mais ética e profunda sobre o tema. “É preciso discutir como as informações serão divulgadas, sempre pensando no interesse público, com respeito máximo às vítimas e as exposições que o jornalismo naturalmente causa”, sugere o jornalista.
A jornalista Patrícia Paixão acredita que um jornalista ler o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e entender o papel da profissão é o primeiro passo para uma cobertura menos espetacularizada. Já Andrea, pensa que exista uma ética pessoal que precede qualquer escolha profissional, que guia um bom jornalista. “É preciso, antes de qualquer escolha profissional entender o que é sua ética, para levar essa concepção ética para qualquer profissão escolhida, incluindo o jornalismo.” argumenta ela.
O jornalista Rogério Christofoletti afirma que: “é cada vez mais necessário que repórteres, editores, redatores e apresentadores pesem suas responsabilidades na comunicação e anúncio desses casos”. Segundo ele, é preciso mostrar que esses crimes têm consequências reais e concretas, e que invariavelmente resultam em mortes e perdas trágicas.
“Eu acho que a gente precisa começar a cobrir o mundo, como jornalistas, não só no momento em que os acontecimentos explodem. No caso de ataques em massa, precisamos entender que componentes estão por trás de um ato como esse, que sociedade é essa em que essas pessoas moram, o que ambienta essas pessoas, qual é o próprio papel da mídia sobre essas questões? É claro que acontecendo a gente precisa cobrir. Mas há um antes na vida dessas pessoas que nos ajudam a entender o caso com mais profundidade”, reflete Fabiana Moraes.
Rogério ainda afirma que em todos os casos, além de manuais e guias, é essencial que a redação “seja um organismo vivo, que revisa seus procedimentos, e faz correções pontuais na cobertura, seguindo a regra do respeito às vítimas, cuidado com temas sensíveis ao público e com rigor na cobertura.” afirma ele.