O espelho do outro lado do mundo
O efeito contágio
"Ele buscou muitas coisas em seu ato de terror, entre delas a notoriedade, é por isso que você nunca me ouvirá mencionar seu nome", disse a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Arder, em pronunciamento após o ataque armado a duas mesquitas na cidade de Christchurch.
O atentado, considerado terrorista pela primeira-ministra e vários governos internacionais, foi orquestrado por um australiano, militante de extrema-direita, contra muçulmanos que frequentavam a mesquita Al Noor e o Centro Islâmico Linwood. O ataque deixou 51 mortos e mais de 49 feridos.
"Eu imploro, fale os nomes daqueles que perdemos em vez do nome do homem que os levou. Ele é um terrorista. Ele é um criminoso. Ele é um extremista. Mas ele vai, quando eu falar, ser alguém sem nome", afirmou a primeira-ministra neozelandesa em seu discurso. Segundo o canal de notícias americano CNN, a estratégia surtiu efeito: é o rosto dela, e não o do atirador, que dominou a cobertura da mídia na Nova Zelândia. Esta reportagem se propôs a comprovar a veracidade desta afirmação.
Para esta reportagem, analisei a cobertura do ataque às mesquitas de Christchurch do Stuff.co.nz, um site de notícias da Nova Zelândia publicado pela Stuff Limited, uma subsidiária da empresa australiana Fairfax Media Ltd. O Stuff hospeda os sites dos jornais neozelandeses de Fairfax, incluindo os jornais diários de segunda e terceira maior circulação do país, The Dominion Post e The Press, e a maior circulação semanal, The Sunday Star-Times, de acordo com informações do Wikipedia.
A quantidade
O atentado ocorreu por volta das 13h40, na hora local, em 15 de março de 2019 na cidade de Christchurch. Foram publicadas, ao todo, 24 notícias no período de 24 horas após o crime. A primeira notícia foi publicada no dia 15 de março 2019, um pouco mais de 4 horas após o massacre, às 17h46, e nomeada “Tiroteio em Christchurch: Black Caps x Bangladesh cancelados após homens armados atacarem mesquitas de Christchurch” em livre tradução. A matéria fala sobre o cancelamento da partida de críquete que ocorreria no mesmo dia.
A última reportagem publicada no período analisado foi ao ar dia 16 de março de 2019 às 13h27, intitulada “Vídeo captura ato de bravura enquanto polícia prende suspeito de atirar em Christchurch” e exibe um vídeo amador realizado por um local que mostra policiais apreendendo o suspeito pelo atentado. A matéria também contém o relato do autor do vídeo, falas da primeira ministra e do comissário de polícia Mike Bush durante uma conferência de imprensa.
Apesar da cobertura do Stuff ter uma maior quantidade de matérias, ela foi realizada com maior qualidade, profundidade e responsabilidade. Ao ser questionado sobre a grande quantidade de matérias na cobertura de ataques em massa, o jornalista João Valadares afirmou que é preciso fazer uma análise quantitativa em casos como esse que costumam ter uma repercussão gigantesca. “Tem que analisar, as vezes um veículo escreveu várias matérias, mas uma melhor que a outra, sabe? Se o jornalista foi lá escutou o local do ataque, falou do acompanhamento, da segurança, do bairro, e fez uma apuração legal e de qualidade que rendeu muitas matérias” completa ele.
É possível concluir que a cobertura do Stuff, é um desses casos. Na matéria “Cidade de Christchurch em confinamento, milhares de trabalhadores, estudantes presos” em tradução própria, é abordada a consequência do atentado na dinâmica da cidade. Já a matéria “A comunidade muçulmana de Christchurch se sente assustada e insegura” em livre tradução, conta com fala do fundador e presidente do Centro de Reassentamento e Recursos para Refugiados de Canterbury, Ahmed Tani, e aborda o sentimento de medo e insegurança que muçulmanos da região estavam sentindo após o ataque, através do ponto de vista de um porta voz da comunidade.
A reportagem “Chris Kumeroa, especialista em segurança do terrorismo, diz que os neozelandeses precisam estar alertas para possíveis ameaças”, em tradução própria, traz uma entrevista com especialista em segurança e fala sobre o aumento dos crimes com armas de fogo em todo o país nos últimos quatro a seis meses.
Apesar de ter sido publicada após o período de 24 horas, é relevante citar uma matéria especial publicada pelo Stuff no dia seguinte ao massacre e intitulada “O fim da nossa inocência”. Trata-se de uma matéria interativa que inicia com um tributo às vítimas do ataque, com fotos e um pequeno perfil de cada uma. A seção seguinte fala tudo o que se sabe até o momento sobre o atentado, sem citar o nome do atirador, e conta com um mapa interativo com um cronograma do crime. A última seção apresenta a reação ao atentado, incluído o pronunciamento da primeira ministra Jacinda Ardern, do prefeito de Christchurch, do chefe de polícia, do Presidente da Associação Muçulmana de Marlborough e outros líderes mundiais, além de levantar um debate sobre redes sociais e “sua capacidade de controlar o conteúdo em suas plataformas e seu papel mais amplo na radicalização das pessoas que cometem atos violentos”.
Somente o necessário
Ao contrário do que aconteceu na cobertura do ataque a escola em Suzano realizada pela Folha de S. Paulo e o G1, o Stuff não explorou ao máximo os sórdidos detalhes do ocorrido. Na cobertura do primeiro, foi observado um detalhamento excessivo e além de seus nomes e rostos, os leitores foram informados sobre suas roupas, detalhes da vida pessoal, que armas utilizaram, onde adquiri-las e até a ordem que os atiradores atacaram cada vítima.
O professor e pesquisador Rogério Christofoletti, presidente da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, acredita que para realizar uma cobertura sensível é necessário “buscar equilibrar o dever de informar com algumas escolhas editoriais. Que escolhas? Por exemplo, não divulgar detalhes que sejam constrangedores, cruéis ou desimportantes”, conta ele.
As matérias do Stuff optaram por divulgar detalhes após o atentado, como as condutas tomadas pela polícia e esquadrão de bombas e atitudes de solidariedade da comunidade local.
Foco no que interessa
A cobertura imagética
Os editores do Intercept na matéria: “Parabéns, imprensa: vocês deram a notoriedade que os atiradores de suzano queriam” afirmaram o posicionamento do veículo de não publicar fotos dos responsáveis pelo massacre de Suzano. De acordo com eles, republicada à exaustão, a imagem cria um mito.
Apesar de não afirmar publicamente sobre suas escolhas editoriais, a Stuff parece concordar com o The Intercept. Nas 24 matérias analisadas, o rosto do atirador apareceu apenas duas vezes, uma delas em uma foto embaçada e em um vídeo com o rosto do mesmo também embaçado. O vídeo contém um “cronograma do ataque” que inicia com a foto embaçada do atirador, em seguida mostra o depoimento de um sobrevivente, fotos da movimentação no local, vídeo amador do momento em que os policiais teriam prendido o suspeito e finaliza com um policial afirmando o número de mortos em uma cobertura de imprensa.
Na análise da cobertura da Folha de S. Paulo e do G1, percebi que o nome dos atiradores do massacre de Suzano foram amplamente divulgados nos dois veículos, a Folha de S.Paulo citou um deles 59 vezes, e o outro 27 vezes nas 24 horas subsequentes ao ataque. Enquanto o G1 citou o nome do primeiro 37 vezes, e o segundo 26 vezes, no mesmo período.
Já o Stuff citou o nome do atirador apenas 2 vezes, em 24 matérias realizadas nas 24 horas após o crime. A primeira matéria a mencionar o nome do autor foi ao ar no dia 15 de março de 2019, às 22h53, e tem como título “Primeiro-ministro australiano classifica senador como 'repugnante' por comentários sobre ataque terrorista em Christchurch” em livre tradução.
A segunda matéria a citar o nome foi publicada dia 16 de março de 2019, às 08:17 e foi intitulada “Presidente
dos EUA, Donald Trump, denuncia 'ato de ódio' no tiroteio na mesquita de Christchurch” em tradução própria. Apesar de estar no site da Stuff, a notícia é assinada por Jonathan Lemire, repórter da Associated Press, e no rodapé da notícia é possível observar as letras AP, sigla para Associated Press. Uma agência de notícias formada por jornais e estações de rádio e televisão norte-americanas. Neste caso, a matéria não foi produzida pela equipe de repórteres do Stuff.
É possível observar uma grande diferença na atitude editorial de compartilhar o nome dos autores entre os dois veículos brasileiros e o site neozelandês. O posicionamento da jornalista e presidente da comissão de ética do Sindicato de Jornalistas de Pernambuco (SINJOPE), Patrícia Paixão se assemelha
com a atitude adotada pelo Stuff. “Eu acredito que a gente não pode dar
visibilidade a alguém que sobreviveu e está orgulhoso do que fez e se sentindo um herói.” afirma ela.
Mas além da postura de diminuir as citações dos nomes, o site optou por uma mudança de foco da cobertura de ataques em massa que costumamos ver. O Stuff optou por focar nos sobreviventes e seus relatos, em entrevistas e opiniões de especialistas e nas atitudes da comunidade, resultando em uma cobertura mais sensível.
Esta cobertura parece seguir o que pensa e jornalista e professora membro do Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco Andrea Trigueiro ao ser perguntada sobre como cobrir ataques em massa: humanizando. “Trazer o contexto dos atiradores, tratar o assunto com análises qualificadas, apresentar dados que saiam do lugar comum que só valoriza o recorte do crime”, aconselha ela.

Imagem disponível em: https://www.stuff.co.nz/sport/cricket/111329676/please-save-us-bangladesh-cricketer-tamim-iqbal-at-shooting
Os vídeos utilizados na cobertura do ataque de Suzano pela Folha de S. Paulo e G1 giravam em torno do massacre em si. Eram vídeos dos atiradores entrando na escola, das crianças correndo e fugindo. Na cobertura do Stuff, o foco dos vídeos mudou. Em um deles, é possível observar a movimentação de policiais e socorristas no local. Outro contém o depoimento de pais que estavam procurando por seu filho que até o momento estava desaparecido. Ainda compartilharam um vídeo com o relato de uma testemunha e de sobreviventes.
Porém, na matéria “Atentado em Christchurch: Homem fingiu estar morto após ser baleado na perna por terrorista”, em livre tradução, é possível observar o vídeo de um sobrevivente mostrando suas mãos ensanguentadas, o ferimento em si não chega a aparecer. Já a matéria “Vídeo captura ato de bravura enquanto policiais prendem suspeito de atirar em Christchurch” em tradução própria, contém um vídeo feito amadoramente e compartilhado pelo Stuff, que mostra os policiais prendendo o suspeito com certa violência. Não é possível identificar o rosto de nenhuma das pessoas do vídeo e a mesma matéria apresenta uma foto do momento, mostrando o atirador com o rosto embaçado.

Imagem disponível em: https://www.stuff.co.nz/national/crime/111328483/video-captures-moment-police-arrested-shooting-suspected
As demais matérias analisadas possuíam fotos de policiais, do esquadrão antibomba, dos socorristas, de parentes, sobreviventes e de iniciativas da comunidade.
O Stuff parece estar um passo à frente na direção certa rumo a uma cobertura de ataques em massa em que imagens sejam mais pensadas, responsáveis e possam exercer um papel fundamental nessas coberturas, como esperado pela jornalista Fabiana Moraes.

Imagem disponível em: https://www.stuff.co.nz/world/americas/111332266/american-muslims-scared-heartbroken-after-christchurch-mosque-shooting

Imagem disponível em: https://www.stuff.co.nz/world/americas/111332266/american-muslims-scared-heartbroken-after-christchurch-mosque-shooting

Imagem disponível em: https://www.stuff.co.nz/national/111330922/foreigners-were-among-those-killed-in-christchurch-mosque-shooting

Imagem disponível em: https://www.stuff.co.nz/world/americas/111332266/american-muslims-scared-heartbroken-after-christchurch-mosque-shooting