Os ataques em massa são extremamente comuns nos Estados Unidos. Com o intervalo de poucas semanas, a imprensa divulga amplamente um novo caso. Estatísticas mais recentes do Gun Violence Archive afirmam que até agosto de 2019 o número de tiroteios em massa era de 251 só naquele país.
Mas com o passar dos anos, os massacres se internacionalizaram. Casos de school shooting, fenômeno de tiroteio em escolas, em que aluno ou ex-aluno tem por alvo sua instituição e como objetivo fazer o maior número de vítimas, e outros ataques em massa ocorrem por todo o planeta. Até mesmo no Brasil, fato que o vice-presidente, Hamilton Mourão, parece ainda não ter assimilado.
Cada vez que um jovem ou adulto executa um massacre em massa, a mídia está presente para cobrir as consequências. Cada nova informação como o nome do assassino, uma foto ou um pronunciamento sobre o caso se torna uma competição por exclusividade e cliques.
Fazemos isso com o pretexto de ser nosso trabalho. Nos apoiamos no argumento de que o público necessita e deseja saber tudo sobre o acontecimento e é nossa função atender a essa necessidade de informações, garantindo o direito público à informação. Mas, eticamente, até onde podemos ir blindados por esse direito?
Propondo-se a iniciar o debate sobre o tema, esta série de reportagem procura entender como se dá a cobertura de ataques em massa no Brasil, partindo da análise da cobertura dos G1 e da Folha de S. Paulo do ataque a escola Professor Raul Brasil em Suzano/SP. Em seguida conta com uma reflexão sobre até onde pode ir o jornalista resguardado pelo direito à informação . E ao final, proponho um manual com exemplos práticos e diretos para jornalistas e veículos de comunicação que desejam realizar uma cobertura de ataques em massa de maneira mais responsável, humanizada e sensível.
O fio do novelo
No dia 20 de abril de 1999, dois adolescentes com armas de fogo, armas brancas e explosivos caseiros invadiram a escola secundária de Columbine, no Colorado, onde estudavam, e dispararam contra professores e estudantes, resultando em 15 mortes e 21 feridos.
A organização Gun Violence Archive, formada em 2013 para fornecer acesso público online gratuito sobre a violência relacionada a armas nos Estados Unidos, define como tiroteio em massa os episódios em que quatro ou mais pessoas são alvejadas ou mortas por um mesmo atirador ou grupo de atiradores. O ataque de Columbine foi o primeiro tiroteio que tomou uma envergadura global, teve grande repercussão e uma ampla cobertura pela mídia americana. Desde então, um estudo realizado pelo congresso americano estima 78 casos de tiroteio em massa nos Estados Unidos entre os anos de 1983 e 2012. Porém, este número teve um aumento exponencial nos últimos anos, até agosto de 2019, o Gun Violence Archive registrou 251 tiroteios em massa pelo Estados Unidos.
A socióloga francesa Natalie Paton, acredita que o massacre de Columbine teve tamanho eco nas mídias mundiais que terminou por singularizar o fenômeno dos school shootings em face das outras formas de violência juvenil. Paton afirma, em sua tese “School shooting: la violence à l’ére de YouTube” que Columbine pode ser tomado como modelo operatório de todos os school shootings.
É possível observar diversas semelhanças, mesmo décadas depois, entre o massacre de Columbine e o recente ataque à escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, no estado de São Paulo. Entre elas o uso de roupas pretas, armas brancas e explosivos caseiros e a utilização de máscaras.
Para o sociólogo Gladwell é um erro analisar cada incidente de forma independente. Ele acredita que um motim é um processo social, no qual as pessoas fazem coisas em reação e em combinação com as pessoas ao seu redor. Ele defende o argumento de que cada tiroteio em massa reduz o limiar para o próximo, com o massacre de Columbine, em muitos aspectos, sendo o evento
desencadeador chave.
Flora Daemon, em seu artigo “‘Morri para inspirar vocês’: uma análise das narrativas em disputa perpetradas por jovens homicidas/suicidas em ambientes escolares”, afirma que ao observarmos eventos criminosos, é possível verificar que cada novo morticínio praticado se constitui a partir de uma espécie de diálogo com os anteriores. Essa percepção de não isolamento de tais episódios é fundamental para compreendermos a dimensão dialógica evidente entre diversos casos de ataques em massa.
Mas como jovens que nem haviam nascido na época estão hoje cometendo massacres fazendo referências aos autores de Columbine? Grande parte devido à cobertura excessiva realizada pela mídia americana. As matérias divulgaram diversas informações sobre os atiradores, colocaram seus nomes e rostos estampados em capas de revistas, jornais e detalhes sobre o caso eram exibidos quase 24 horas na TV americana, transformando os dois autores em anti-heróis.
"Um homem que não era conhecido por ninguém, agora é conhecido por todos. (...) Seu rosto se espalhou por todas as telas, seu nome estava nos lábios de todas as pessoas do planeta, tudo ao longo de um dia. Parece que quanto mais pessoas você mata, mais você está no centro das atenções"
- Atirador que atacou uma faculdade da comunidade de Oregon
O tratamento jornalístico destes eventos é acusado de disseminar uma “cultura do medo”, de acordo com Glassner, e de alimentar a difusão do fenômeno ao dar aos assassinos uma real notoriedade midiática, o título de matadores e anti-heróis, e a ascensão na hierarquia social ao estatuto de celebridade que eles tanto almejam.
De acordo com a socióloga francesa Natalie Paton, ao reproduzir um tiroteio seguindo um roteiro predefinido, os assassinos dão provas de reflexividade, de que conhecem as repercussões de seu gesto e o que acontecerá às suas imagens públicas se agirem de determinada maneira. Esse efeito “copycat’ para ela não é prova da influência da mídia, e sim sinal de uma estratégia de comunicação intencional da parte dos protagonistas. Nesse cenário, as mídias não assumem um papel de influência, mas um recurso de visibilidade.
Adam Lankford, criminologista da Universidade do Alabama, em seu estudo "Don't name them, don't show them, but report everything else" sobre o efeito de contágio de tiroteios em massa, coloca o seguinte: “Muitos desses indivíduos reconhecem que assassinar um grande número de homens, mulheres ou crianças lhes garantirá fama. Eles acreditam que seus nomes e rostos adornarão jornais, televisão, revistas e internet - e, infelizmente, eles estão certos. ”
Mas nossa cobertura é também resultado da falta de conhecimento e debate sobre o tema. O setor de notícias brasileiro ainda não compreendeu nossa responsabilidade de cobrir tiroteios em massa com o cuidado necessário. Se não lutarmos para mudar este cenário, corremos o risco de contribuir e desencadear ainda mais assassinatos em massa.